Luis Nassif Online, 21/06/2014:
Andrew Solomon
"Longe da árvore" e reflexões sobre educação inclusiva
Por Tagutti
Por Tagutti
Andrew Solomon é uma personalidade fascinante. PhD em psicologia pelo Jesus College, Cambridge, possui o poder de narrar histórias situando-se no limiar entre o acadêmico e o artístico. Já premiado pelo "National Book Award" de 2001, e finalista do Prêmio Pulitzer de 2002 pelo seu "Atlas da Depressão", em "Longe da Árvore" escreve sobre a experiência mais desafiadora para as pessoas que querem adentrar no mundo da paternidade: a criação de filhos com condições especiais.
Em um projeto que durou dez anos para ficar pronto, entrevistando centenas de pessoas, realizando ampla pesquisa sobre cada uma das condições abordadas em seu livro, desde o início resta claro o seu tom autobiográfico. Proveniente de uma família judia tradicional, ficou marcado no autor o fato de seus pais terem lutado incessantemente para tratar sua dislexia, mas terem tido dificuldade para aceitar sua homossexualidade.
De fato, como o autor frisa no capítulo introdutório, em nosso subconsciente deita a vontade de nos enxergarmos em nossos filhos, sendo estes uma maneira de superarmos a nossa própria decadência física. Destarte, muitos de nós estamos despreparados para lidar com crianças com condições não familiares. A paternidade abruptamente catapulta-nos a uma relação permanente com um desconhecido, e quanto mais diferente é este desconhecido, mais forte é o sentimento de negatividade. Crianças cujas características peculiares aniquilam esta fantasia de imortalidade são um insulto particular; nós devemos amá-los por eles mesmos, e não pelo melhor de nós refletido neles.
O fato de Solomon ter manifestado, desde cedo, padrões comportamentais distantes do hétero-normativo, criou em seus pais esta cisão entre sua auto-imagem e a imagem de seu filho. Aliás, o trato da sociedade com a homossexualidade é representativo das contradições a que passam diversas condições especiais: em outros tempos (hoje mesmo, por algumas pessoas e sociedades) tratada como enfermidade a ser curada com terapia e medicamentos, em dias atuais como uma identidade.
O autor cita o exemplo da impressionante cultura dos surdos nos Estados Unidos, com colégios e universidades especiais, instituições voltadas aos seus interesses, um intenso ativismo defendendo considerar a surdez como identidade, e não enfermidade. Tratam, por exemplo, o implante coclear como uma tentativa de aniquilar a sua rica cultura, e não possuem interesse em avanços científicos que façam o mundo superar em definitivo a surdez. A mesma coisa pode-se dizer do movimento dos direitos dos autistas ("neurodiversidade"), que defende o autismo como variação no funcionamento e não como uma desordem mental.
A despeito de tais esforços, de todo caso legítimo, algo que podemos com segurança afirmar é que não se pode colocar no mesmo balaio todos os tipos de condições especiais existentes. Mesmo no seio de algumas delas (como no autismo, na síndrome de down e na esquizofrenia), podemos resgistrar uma variação imensa de funcionamento cognitivo e social entre os indivíduos, razão pela qual incluí-las em uma ou outra categoria (identidade ou enfermidade) é não raro um assunto muito espinhoso.
Enquanto, por exemplo, no espectro autista podemos encontrar indivíduos como Albert Einstein, Stanley Kubrick e Temple Grandin, de outro temos pessoas com deficiências extremas de aprendizado, e com habilidade social tão reduzida que torna impossível a convivência sem algum tipo de tratamento ou abordagem especial. Solomon menciona um autista que teve problemas, depois de ter manifestado a vontade de tocar a virilha de uma funcionária do Mcdonald's que perguntou o que ele queria, e inúmeros casos de indivíduos com acessos de raiva, perigo a integridade física a si mesmo e a outros que o rodeiam, fala ininteligível e outros comportamentos peculiares.
Não se deve, assim, adotar uma posição tão intransigente, do ponto de vista pedagógico, ao abordar crianças com necessidades especiais. De fato, inclusão é um valor caro à nossa época, ciosos que estamos em integrar indivíduos nas mais diversas áreas. Mas ao passo que o acolhimento de alguns na rede oficial pode significar o primeiro passo na superação de um problema de marginalização histórico, de outro lado este mesmo processo pode soar terrivelmente inadequado para indivíduos que precisam de tratamento muito peculiar das suas especialidades.
Diferentemente da surdez e do nanismo, é polêmico (em alguns casos, até temerário) tratar algumas condições, como a esquizofrenia e o autismo, como deficiências que não precisam dos avanços científicos para serem mitigadas ou até em alguns casos eliminadas. Enquanto alguns ativistas manifestam-se publicamente sobre o como sentem-se bem e até exaltam o sua maneira peculiar de perceber o mundo, existem vários outros com capacidade limitadíssima (senão inexistente) de comunicação, que convivem com a depressão e com a desesperança tão só por terem ciência de sua condição. Esta oscilação entre identidade e enfermidade é uma ambivalência não rara no trato do assunto, e que permeia todo o livro de Solomon.
Por isso, o quanto mais a sociedade passa a conhecer os detalhes e as disfucionalidades que permeiam tais casos, menos a solução do caso da instrução dos seus portadores depende do radicalismo preto-no-branco "inclusão/segregação" que permeia o debate sobre a educação inclusiva.
O radicalismo dos defensores desta última é, de certa forma, um manifesto político, um libelo contra a discriminação sofrida por crianças especiais. Embora defendam ideias diferentes, os motivos pelos quais ativistas surdos e defensores da educação inclusiva são os mesmos: combate ao preconceito.
Destacando a admiração que se tenha por estes ideais, tal abordagem é no mínimo discutível, do ponto de vista pedagógico. Tanto um prodígio da matemática ou do piano quanto um indivíduo com severa dificuldade de aprendizem possuem certas demandas que não raro a rede regular não consegue atender. Em ambos os casos, o sujeito muitas vezes é afastado do ambiente de ensino comum, de crianças de mesma idade e classe social, experimentando um isolamento que muitas vezes pode redundar em sofrimento. Não obstante, enquanto no caso da criança excepcional exalta-se este remédio muitas vezes amargo como uma medida necessária para desenvolver de maneira plena sua genialidade, o extremo oposto é tratado com ojeriza, visto como segregação.
A inclusão deve ser perseguida a todo custo, mas desde que isto não afete o desenvolvimento cognitivo dos seus alunos.
O exemplo citado dos surdos é representativo da prioridade que deve ser dada ao processo de aprendizagem (se conflitar com a inclusão plena): como frisado por Solomon, o período crítico para conectar significados de fonemas específicos situa-se entre o oitavo e o trigésimo sexto mês, com uma diminuição gradual de capacidade de aquisição linguística até a idade de 12 anos. Como os surdos possuem uma dificuldade muito grande de aprendizado da leitura labial, a linguagem de sinais pode e deve ser aprendida pelos surdos como primeira língua, igual acontece com a linguagem falada para crianças não surdas. De fato, crianças que adquirem plenamente a linguagem de sinais possuem menos dificuldade em se envolver com a leitura labial.
Caso contrário, passada a idade chave para aquisição de linguagem sem de fato ter adquirido nada, a criança não conseguirá se desenvolver cognitivamente de maneira completa, e permanentemente sofrerá de uma forma prevenível de retardamento mental. Se para uma criança cadeirante a educação inclusiva é uma benção, colocar surdos desde a tenra idade em salas para ouvintes pode ser um desastre completo. De fato, para se incluir em uma sala regular que tenha tradutores de Libras, primeiro a criança deve frequentar salas e instituições especiais para adquirir a linguagem de sinais como primeira linguagem.
Há de se afastar, portanto, o estigma representado por termos como "segregação" caso a separação da criança de classes regulares seja requisito sine qua non para seu aprendizado completo. Optar entre a inclusão ou o desenvolvimento cognitivo completo de uma criança é um falso dilema, devendo a segunda opção ser a prioridade número um para os educadores e planejadores públicos.
Desta forma, deve-se adotar medidas aparentemente (apenas aparentemente) contraditórias acerca do assunto: estimular a educação inclusiva, tornando obrigatória a sua oferta na rede regular de ensino, e ao mesmo tempo subsidiar a construção de instituições específicas (bem como valorizar as já existentes) para o tratamento/aprendizado às mais diversascondições especiais existentes. O proselitismo/demagogia que cerca certos dirigentes de Apae's e/ou políticos ligados a elas é um assunto lateral. Caso seja, removam-se os dirigentes, critique-se a gestão concebida, mas que não se olvide nem se elimine a rica experiência trazida por estas instituições.
Se uma sociedade que começa a se incomodar com o futuro das crianças que não se enquadram no modelo considerado "comum" deve ser celebrada, a discussão deve avançar para que não adotemos posições radicais de inclusão forçada, que podem ser tão deletérias ao aprendizado destas crianças quanto o alheamento histórico a que foram submetidas.
Traçado o paralelo com o tema "educação inclusiva", tão intensamente discutida no Brasil nos últimos tempos, "Longe da Árvore" é um livro para ser lido e relido por pais, educadores, ou qualquer pessoa que se interesse pela complexidade que caracteriza os relacionamentos humanos. Os mais variados relatos feitos por pais com condições especiais são comoventes, e sua narrativa muito enriquecedora sobre perceber o que é ser pai, sobre perceber o que é ser um ser humano solidário. Imperdível.
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