terça-feira, 21 de julho de 2009

A última grande luta

ANDREI BASTOS

Don Aucoin, jornalista americano, afirmou no artigo “A última grande luta”, publicado em 2008 no jornal The Boston Globe, nos EUA, que a emancipação da pessoa com deficiência se equipara às lutas do negro e da mulher por direitos e é a última com tal dimensão. Quanto à equiparação, tudo bem, mas quanto a ser a última, acho que não. Sendo pessoa com deficiência, como posso dizer isso? Acontece que minha deficiência resultou de um câncer, contra o qual estou comemorando dez anos de luta vitoriosa.

Fiz um bom negócio ao pagar pela vida com a deficiência. Por outro lado, enfrentar dias e noites com uma doença grave me fez entender direitos humanos e dignidade de forma muito peculiar. Tais conceitos contemplam a todos e têm que promover nos doentes graves a elevação da autoestima. Como? É questão delicada, a ser enfrentada com igual delicadeza, e que define a garantia de direitos e dignidade dessas pessoas como a verdadeira última grande luta.

Ao contrário da tradicional roleta russa, praticada com uma bala, em 2003 fui instado a fazer uma com cinco balas. Tratava-se de seis ciclos de quimioterapia, um leve e cinco pesados. A comparação se deveu à não garantia de bom resultado, pois a recidiva do tumor descoberto em 1999, e combatido desde então, me incluiu num percentual mínimo de doentes de câncer para os quais a Medicina não sabia o que fazer, segundo os médicos.

Aceito o desafio, fiz o primeiro ciclo, mas logo concluí pela analogia com roleta russa. Após a aplicação do remédio, acordei um dia numa poça de sangue, que literalmente jorrava do meu nariz. Quarenta dias depois, recuperado e decidido a respeito da continuidade ou não do tratamento, perguntei ao médico se quimioterapia matava e se ele já tinha perdido pacientes com ela. Diante das afirmativas, eu lhe disse que não seria o próximo.

Ao contrário do que possa parecer, eu não estava dando uma de machão, mas sim apresentando o resultado da minha reflexão sobre a situação delicada em que me encontrava. Minha decisão se deveu ao medo da morte certa, diante das cinco balas representadas pelos ciclos restantes, e não à coragem de enfrentar a morte incerta, anunciada pelos médicos como uma incógnita. Assim, sem mais nenhum remédio, cheguei até aqui, quando temos um documento científico indicando o não tratamento para casos como o meu.

Ouvimos a vida inteira que a cura começa na vontade do doente, o que é verdade. Mas para existir essa vontade, e para que ela seja fortalecida, também é preciso garantir direitos e dignidade criando-se condições para a pessoa com doença grave, com apoio e participação de familiares e amigos, ir além dela mesma e lutar socialmente, entre muitas outras coisas, por atendimento de qualidade no sistema público de saúde e por incentivo a pesquisas científicas, como a das células-tronco, uma luta vitoriosa de todos.

O direito ao remédio e à saúde, que parece tão óbvio, na verdade enfrenta barreiras mais terríveis do que as que mulheres, negros e pessoas com deficiência enfrentaram e enfrentam. Apesar de tal direito ser entendido como universal e inquestionável, a grande maioria dos doentes graves não tem os privilégios que eu e outros mais ou menos bem-nascidos temos, de bons médicos e hospitais cinco estrelas, e, para o usufruírem precisam superar não apenas preconceito, discriminação e pouco discernimento, mas, sobretudo, interesses inescrupulosos de um mercado da vida e da morte que não oferece boas chances de sobrevivência aos pobres.

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