Agência Inclusive, 08/07/2009:
A deficiência intelectual em indivíduos com síndrome de Down é consequencia de privação cultural, não uma determinação genética
Gil Pena
Introdução
Quando nasce uma pessoa com trissomia do cromossomo 21, o fenótipo característico (crânio com diminuição do diâmetro ântero-posterior, pregas epicantais, falanges curtas, espaços alargados entre primeiro e segundo dedos, e outros achados), geralmente leva ao diagnóstico de Síndrome de Down. Ao momento em que o fato é comunicado aos pais, predições prognósticas pessimistas em relação ao desenvolvimento intelectual e saúde em geral são incluídas na informação oferecida.
A nossa proposição é a de que o “retardo mental moderado a severo”, geralmente incluído nas descrições médicas da síndrome não é determinado pela estrutura genética da pessoa trissômica, mas é produto da privação cultural.
Essa proposição é bem suportada por três linhas de evidência, que serão apresentadas em sequência. Primeiro, será mostrado que os indivíduos com síndrome de Down são geralmente expostos a uma educação sem significado, culturalmente vazia, que impede o desenvolvimento de processos psicológicos superiores. Segundo, será demonstrado que o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores são dependentes de um contexto culturalmente rico. Na visão de Vigotski, esses processos psicológicos representam a aquisição pelo indivíduo das ferramentas culturais. Terceiro, será mostrado que as mudanças de atitude em relação as pessoas com síndrome de Down realmente propriciam resultados antes impensáveis em seu desenvolvimento cognitivo.
O contexto cultural
Pessoas com síndrome de Down são geralmente expostas a um contexto culturalmente pobre. A síndrome de Down pode ser diagnosticada tanto no período pré-natal, como após o nascimento. Reações das mães (e também dos pais) à notícia são mais frequentemente negativas do que positivas e a aceitação da criança e o vínculo entre mãe e filho ou filha pode demorar a se estabelecer (Skotko, 2005 – DOI: 10.1542/peds.2004-0928 – http://pediatrics.aappublications.org/cgi/reprint/115/1/64)
Como muito bem descrito por Melero (2003: ):
Nos primeiros momentos de qualquer criança, no contexto familiar, cria-se ou inicia-se a formação de um tipo de plataformas de entendimento entre os pais e a criança – os formatos de ação conjunta – que são como a primeira oportunidade de cultura que os adultos oferecem à criança. Essa primeira experiência pode ser interrompida no cenário das famílias onde chega uma criança com síndrome de Down, dado o impacto da notícia dentro do núcleo familiar. Posteriormente, dado que nenhum espaço foi construído para essas experiências entre a mãe e a criança, nenhuma troca é estabelecida, originando um vazio na produção dos formatos de ação conjunta. A presença de uma criança com síndrome de Down pode interromper o diálogo mãe-filho/filha, originando uma lacuna cognitiva muito difícil de se reparar.
A relação entre adultos (sejam eles pais/mães, avôs/avós ou professores/professoras) e as crianças com síndrome de Down são qualitativa e quantitativamente diferentes daquelas observadas entre adultos e as crianças sem a síndrome. É possível que o caráter mais distintivo seja a confiança. Na relação que se trava com a criança sem a síndrome, confia-se que é capaz de aprender e adquirir a autonomia. Já na relação com a relação com a síndrome de Down falta a confiança, furtando-se muitas oportunidades de que aprendam e adquiram autonomia. Atos simples como vestir-se e calçar-se podem servir de exemplos. É de se observar como o diálogo ocorre entre crianças e adultos, na medida em que desempenham em conjunto uma tarefa: o adulto vai trilhando com palavras a ação: veja, coloca a blusa assim, olha a etiqueta, é a parte de trás, aqui o buraco da cabeça, dos braços, como abotoar, etc. Com isso, essas operações em sequência, inicialmente executadas em conjunto com o adulto, são gradativamente feitas pela criança sozinha, na medida em que ela vai adquirindo autonomia. O que ocorre com a criança com síndrome de Down é que muitas vezes ela é vestida pelo adulto, sem que seja apresentada a ela a sequência de operações envolvida naquela ação.
Em praticamente tudo que aprendemos, este formato de ação conjunta está presente. No começo, quando não sabemos fazer, dividimos a tarefa com quem sabe fazer, que vai nos mostrando como se faz. Aos poucos, quem sabe vai nos transferindo a ação, deixando que façamos, até que consigamos desempenhar toda a ação. Mesmo as funções que parecem brotar internamente no nosso desenvolvimento, como compreender ou falar, podem ser remontadas a esse processo inicialmente social, que gradativamente vai sendo construído e internalizado mentalmente. Na medida em que não se estabeleça a interação adequada entre a criança e o adulto, esse processo de construção fica comprometido. O retardo no desenvolvimento surge então como uma consequência do tipo de interação que se estabelece.
Um outro exemplo pode tornar isso mais claro. Estamos de férias e uma criança nos diz: “Piscina”. A nossa reação é distinta se estamos diante de uma pessoa com ou sem síndrome de Down. Se estamos diante de uma pessoa sem síndrome de Down, perguntamos “O que é que tem, ‘piscina’? O que você quer dizer?”. A nossa expectativa em relação aquela pessoa é a de que seu pensamento deve completar-se. Com isso, ajudamos a criança a construir o seu pensamento, incorporando outras palavras àquilo que pretende comunicar (nadar, vestir a roupa de banho, etc). Se a criança com Síndrome de Down nos diz “piscina”, nós completamos todo o seu pensamento, dizendo a ela: “Isso, vamos nadar na piscina, mas antes temos de vestir a roupa de banho, e vamos passar para tomar o café, e só podemos nadar na piscina rasa, etc, etc”. Dizer “piscina” satisfaz as nossas expectativas em relação a essa criança, e não nos damos o trabalho de ajudá-la a completar o seu pensamento: ao invés de ajudá-la a construir, fazemos isso por ela.
Também no ambiente escolar, a relação que se estabelece com a pessoa com síndrome de Down é também diferente. Muitas escolas estabelecem adaptações curriculares e simplificações de conteúdo, que resultam numa educação destituída de significado, não oferecendo ferramentas culturais que possam servir de instrumento para o desenvolvimento cognitivo. Partindo do princípio de que não podem assimilar o abstrato, nada se lhes ensina, que não seja concreto. Não sendo lhes ensinado, não conseguem desenvolver o raciocínio, mas o que se atribui à carga genética, deriva, na realidade, da expectativa que se estabelece ao início em relação às possibilidades de desenvolvimento dessas pessoas. Não raramente se escuta dizer que a escola não tem um compromisso com a educação dessas pessoas, que estão lá para socializar-se.
O desenvolvimento dos processos psicológicos superiores
Foi Vigotski quem inicialmente traçou uma relação entre a interação social e o desenvolvimento dos processos mentais superiores. Seus estudos sobre o desenvolvimento da atenção, da percepção, da memória e da linguagem, demonstram o processo de construção dessas funções, a partir de ferramentas inicialmente externas, que são gradativamente internalizadas pela criança. O desenvolvimento cognitivo não surge do amadurecimento das estruturas orgânicas, mas da capacidade cerebral de reproduzir mentalmente aquelas ferramentas originalmente externas, que apoiavam aquela função.
Em determinada fase do desenvolvimento, por exemplo, quando perguntamos a idade da criança, ela nos responde, mostrando os dedos (três dedinhos, três anos). Os dedos, uma ferramenta externa, ajudam a criança a expressar aquela quantidade. Aos poucos, na medida em que internaliza a quantidade três e usa o número três para expressar essa quantidade, passa a nos dizer o número, “3″. O “3″ passa a ser o signo para a quantidade três (inicialmente expressada pela criança como três dedinhos). O “3″ é então um elemento mediador da quantidade que queremos expressar e a quantidade propriamente dita. Se perguntamos 3+3, a criança pode inicialmente usar os dedos, como ferramenta externa, para trabalhar as quantidades e nos oferecer o resultado. Depois opera com os números, mas no início, havia a ferramenta externa, onde o adulto podia participar e ajudar naquela operação.
A grande contribuição de Vigotsky nesse entendimento foi o que ele próprio denominou de zona de desenvolvimento próximo. Segundo ele, o desenvolvimento da criança pode ser compreendido como ciclos de construção, em que o desenvolvimento próximo vai sendo gradativamente consolidado e incorporado ao desenvolvimento real. No desenvolvimento real, a criança consegue desempenhar uma tarefa sem ajuda. No desenvolvimento próximo, ela consegue compreender os objetivos da tarefa e pode executá-la, se tiver ajuda. É na fase do desenvolvimento próximo onde ocorre o aprendizado. É esse aprendizado que provoca o desenvolvimento.
Vigotski também estudou o desenvolvimento das pessoas com deficiência. Seu livro, Fundamentos de Defectología, avalia extensamente aspectos do desenvolvimento das pessoas cegas, surdas e com deficiência intelectual. Embora o processo de desenvolvimento dessas pessoas possa estar comprometido pela deficiência orgânica, as origens culturais do desenvolvimento cognitivo permitem a construção de caminhos alternativos, que não obstaculizados pelos efeitos da deficiência. O cego pode ler pelo tato, ou pelo leitor de tela nos computadores. O surdo pode ‘ouvir’ pela visão dos movimentos dos lábios.
Como a nossa cultura está dirigida às pessoas ditas normais, há uma aparente sincronia entre desenvolvimento cognitivo e biológico, e não nos damos a perceber a aquisição das ferramentas culturais no processo de desenvolvimento. Temos a impressão de que esse desenvolvimento gradativo ocorre naturalmente, quando na realidade, resulta de um caminho aberto pelo aprendizado. Para operar grandes quantidades numéricas, por exemplo, usamos a base dez (não por coincidência talvez, mas por contarmos até dez com os dedos), e separamos as grandes quantidades em ordens de dezenas, centenas, milhar e operamos agora as dezenas, as centenas, etc. Essas ordens de grandeza são instrumentos culturais que usamos para driblar a dificuldade natural que temos em lidar com as grandes quantidades numéricas.
Considerando que o desenvolvimento tem origem na aquisição das ferramentas culturais, as dificuldades apresentadas pelas pessoas com síndrome de Down podem ser contornadas com as ferramentas da cultura. Se a educação oferecida a essas pessoas omite a cultura, furtamo-lhes os principais instrumentos que toda pessoa usa para desenvolver-se. Com isso, muitas dessas pessoas acabam por construir-se na deficiência, uma vez que formam-se em um contexto deficitário dos elementos da cultura.
Mudanças de atitude e o desenvolvimento das pessoas com síndrome de Down
O desenvolvimento das pessoas com síndrome de Down depende largamente do contexto cultural oferecido, mais do que da carga genética. Nos últimos tempos, isso vem sendo gradativamente reconhecido e um melhor contexto cultural é oferecido a essas pessoas. Se avaliamos uma pessoa com síndrome de Down hoje, as suas conquistas em relação ao seu desenvolvimento são apenas de longe comparáveis ao desenvolvimento apresentado por uma pessoa com síndrome de Down, nas décadas de 50 ou 60 do século passado. Decerto, a estrutura genética dos portadores da síndrome não se alterou nestes últimos 50 anos, de modo que podemos atribuir a melhora apenas às intervenções realizadas no contexto. Atualmente, há pessoas com síndrome de Down bem orientadas no tempo e no espaço, e desempenham com autonomia muitas tarefas. Hoje, não é incomum que se encontrem pessoas com síndrome de Down alfabetizadas, praticamente ao mesmo tempo que seus contemporâneos sem a síndrome. O aprendizado da leitura e da escrita é uma conquista escolar importante na vida de qualquer pessoa e deve ser muito valorizada. Ainda para muitos, com a crença de que não aprendem, a linguagem escrita não é ensinada a essas pessoas, ou ao menos, esse ensino não leva em conta a peculiaridade dessas pessoas, impossibilitando que origine um aprendizado efetivo.
Hoje, reconhece-se que as pessoas com síndrome de Down necessitam ser estimuladas, para que se desenvolvam. Há programas de fisioterapia, terapia ocupacional e fonoaudiologia orientados a oferecer um reforço na aquisição de habilidades específicas, em geral motoras. Com isso, conseguem alcançar mais precocemente os marcos do desenvolvimento motor, como sentar e andar.
O estímulo tem de ser oferecido também como reforço ao seu desenvolvimento cognitivo. Esse reforço são as ferramentas da cultura, que podem compensar a deficiência. Para que possam de fato aprender, contudo, necessitamos mudar nossa atitude em relação a essas pessoas. Mudar de atitude significa reconhecer e confiar em sua capacidade de superar as dificuldades. Significa entender que é na interação social que se origina o desenvolvimento. Temos de nos comprometer a oferecer um contexto que estimule esse desenvolvimento.
O Projeto Roma, projeto de educação idealizado pelo Prof. Miguel Lopez Melero (Facultad de Educación, Universidad de Málaga), busca oferecer contextos que favoreçam o desenvolvimento. A problematização da realidade cotidiana, a elaboração de projetos de investigação, sempre levando em conta as dimensões do ser humano (cognitiva, comunicativa, afetiva e de autonomia), o uso da fotografia e dos videos, são estratégias importantes, para a aquisição das ferramentas culturais e a superação da deficiência. Ao propiciar um mecanismo para a elaboração de soluções aos mais diferentes problemas, o Projeto Roma explica como se consegue resolver aquela tarefa, mediante a elaboração de um plano de ação.
A experiência tem demonstrado que as pessoas com síndrome de Down podem alcançar níveis de desenvolvimento cognitivo antes não imaginados, impondo que repensemos a idéia de que o retardo mental seja um atributo da síndrome, relacionada à carga genética desses indivíduos.
Bibliografia
Skotko, B. Mothers of Children With Down Syndrome Reflect on Their Postnatal Support. Pediatrics 2005;115;64-77.
López Melero, M. El Proyecto Roma: una experiência de educación en valores. Aljibe, 2003
Vigostki, L. S. A formação social da mente.
Vigostki, L. S. Fundamentos de defectología.
Fonte: Blog Disdeficiência
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