O Globo, Opinião,
07/09/2014:
Vida após a
interdição
JOSÉ DE MATOS E LUIZ
CLÁUDIO ALMEIDA
“Mamãe esqueceu a senha
do banco”, “mamãe foi enganada com o troco da feira”. Essas passaram a ser
frases comuns na família de Sílvia, professora de matemática no Rio de Janeiro.
Os filhos, sempre em tom baixo, comentavam os frequentes lapsos de memória da
mãe, num misto de conspiração e culpa. Diante do agravamento do seu quadro
mental, a família decidiu interditá-la judicialmente.
A partir da sentença,
Sílvia perdeu a condição de protagonista de sua própria história. Não podia
mais ir a bailes ou à feira nem visitar amigas. Deixou de ser atendida pelo
médico de sua confiança porque os filhos preferiram uma equipe mais
“qualificada”. Foi impedida de sair, votar e, aos poucos, tornou-se uma sombra
do que era. Em resumo, perdeu o direito à dignidade e à cidadania.
A história de Sílvia
ilustra a necessidade de se repensar o ato de interdição judicial, de forma a
proteger os direitos da pessoa afetada pela perda da capacidade mental. A
interdição — hoje um instrumento banalizado no Judiciário — não pode representar
a castração psicossocial do indivíduo. Pelo contrário: ela deve respeitar as
suas potencialidades, envolvendo ações multidisciplinares.
O Ministério Público do
Estado do Rio propõe uma mudança de atitude entre os operadores do Direito.
Essa mudança consiste em priorizar a interdição parcial em detrimento da total,
hoje amplamente majoritária. Não basta a nomeação de um curador para tomar
decisões em nome do interditado.
Todo o processo deve ser
mais humanizado, respeitando as habilidades de cada um. É possível, por
exemplo, restringir seu direito a alienar um imóvel para protegê-lo da ação de
oportunistas, sem afetar sua capacidade de trabalhar, votar e até mesmo casar.
O ponto de partida é o diálogo entre as instituições envolvidas no processo e a
sociedade civil, criando uma cultura baseada no cuidado da pessoa.
No Brasil, o ato de
interdição judicial sofreu a mesma influência isolacionista que assolou o
cuidado com o portador de transtorno mental, o idoso e o apenado judicial.
Postulava-se que “ficar sozinho” seria útil para pensar melhor sobre questões
existenciais. Inicialmente, isolaram-se os leprosos em instituições distantes
dos centros urbanos e, mais tarde, os loucos nos leprosários abandonados, os
idosos em asilos e os criminosos ou presos sob custódia em instituições penais.
Assim, a interdição teve
mais o efeito de expurgar aqueles que não contribuíam produtivamente para o
meio sóciocultural e econômico do que como recurso de adaptação dos incapazes,
respeitando seus direitos e sua dignidade. Está na hora de virar essa página.
O ato judicial não pode
servir apenas como instrumento de proteção do patrimônio. É fundamental uma
visão mais abrangente do contexto familiar e da estrutura psíquica do
interditado. Viver é uma dádiva, mesmo com todas as adversidades que possam
acompanhar nossa existência. Somos os protagonistas de uma aventura que oscila
entre bons e maus momentos, mas sempre os protagonistas.
José de Matos é
presidente da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro e Luiz Cláudio Almeida
é promotor de Justiça
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