domingo, 27 de abril de 2014

Invisibilidade burocrática

ANDREI BASTOS

Minha deficiência é irreversível, como as outras, ao menos até os cientistas conseguirem fazer crescer uma nova perna em mim. E como algumas das outras deficiências, a minha também é visível, com grande evidência. Mas não nasci sem a perna que me falta e, depois que fui obrigado a amputá-la, também fui obrigado a muitas perícias médicas para atestar a continuidade de sua ausência no meu corpo.

Recentemente, ao renovar minha carteira de motorista, fui mais uma vez encaminhado para o procedimento de constatação de que não havia me crescido uma perna nova, conhecido como perícia médica do Detran. Seria cômico, se não fosse uma expressão lamentável dos excessos burocráticos dos serviços públicos, e se também não significasse desperdício de dinheiro igualmente público.

Quando amputei a perna, um dos primeiros procedimentos fisioterapêuticos a que fui submetido foi o de “surras” com uma régua de madeira na cicatriz resultante da cirurgia. Diante do meu espanto em ter que apanhar logo após a experiência traumática da amputação, meu fisioterapeuta explicou que essa era a maneira de informar ao meu cérebro o novo limite do meu corpo.

Vivendo e aprendendo, constatei que apesar das “surras” de régua, por muito tempo senti, na perna que não existia mais, no ar, a conhecida “dor-fantasma”, assim como a “coceira-fantasma”, o “calor-fantasma” etc. Mesmo hoje em dia, mais de dez anos passados, ainda tenho sensações-fantasmas quando me estresso ou me canso. Tudo invisível como na invisibilidade burocrática do Detran.

Claro que o desperdício de dinheiro público com um procedimento desnecessário preocupa, mas é pior o significado desse anacronismo, já que bastaria uma primeira e única perícia para atestar atributos irreversíveis de pessoas com deficiência. Tal absurdo “invisível” revela a invisibilidade maior dessas pessoas na sociedade. Da mesma forma que a invisibilidade de uma perna inexistente é invisível para órgãos públicos, todas as deficiências são invisíveis para a sociedade, cuja maioria não nasceu sem uma perna ou com outra deficiência.

É claro também que a solução para a deficiência da administração pública não é lhe dar “surras” de régua para informá-la dos limites dos cidadãos com deficiência, mas sim promover a conscientização de todos, particularmente com a incorporação de pessoas com deficiência na definição de procedimentos burocráticos que lhes digam respeito.

E como as deficiências já não são mais consideradas doenças, quando eram atestadas segundo os parâmetros da Classificação Internacional de Doenças (CID), e são identificadas atualmente pelas características de funcionalidade das pessoas que as têm, segundo os parâmetros da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF), já podemos começar substituindo o atestado médico por um documento clínico equivalente, assinado por médicos, fisioterapeutas ou outros profissionais capacitados para a tarefa. Uma primeira e única vez, bem entendido.

Andrei Bastos é presidente do Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência do Rio de Janeiro (Comdef-Rio).

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