O Globo, Opinião, 22/11/2014:
Espaços deficientes
GRACIELA POZZOBON DA COSTA
Pode uma menina cega assistir a uma peça de teatro e ao fim sair comentando sobre detalhes do cenário e figurino? Pode um rapaz surdo ir a um musical e se emocionar com a letra das músicas que compõem a trilha? Pode uma pessoa cega ser júri de um festival de cinema? Pode um grupo de amigos cegos ir ao teatro e ler o programa sem ajuda?
As situações descritas acima têm acontecido ultimamente, graças a alguns recursos de acessibilidade, que, quando bem aplicados, permitem que pessoas com deficiência visual e auditiva absorvam o conteúdo imagético e sonoro de um evento.
A audiodescrição e material em Braille para as pessoas cegas, a interpretação em Língua Brasileira de Sinais e as legendas em português, para as pessoas surdas, são os recursos de acessibilidade responsáveis por quebrar barreiras, estabelecer um novo patamar de convívio e minimizar a desigualdade histórica de oportunidades à qual as pessoas com deficiência estão submetidas.
Segundo a ONU, cerca de 10% da população mundial, aproximadamente 650 milhões de pessoas, vivem com uma deficiência e cerca de 80% dessas pessoas vivem em países em desenvolvimento. Diante desta constatação, todos os esforços para diminuir as barreiras que impedem o acesso desta parcela da população às atividades cotidianas deveriam estar no centro das discussões e planejamentos dos governos. Enquanto isso não acontece, devemos atribuir à palavra “deficiente” aos locais que não estão adaptados a receber o público na sua totalidade.
No atual sistema de produção cultural do Brasil, grande parte dos projetos é realizada via leis de renúncia fiscal, ou seja, através de impostos de todos os brasileiros, incluindo as pessoas com deficiência visual e auditiva. Desta forma, seria razoável que este grupo também tivesse acesso às obras produzidas.
Leis e editais que indiquem a aplicação dos recursos de acessibilidade nos projetos culturais, políticas públicas, diálogo entre setores e linhas de financiamento são ações urgentes que apenas se esboçam no horizonte.
Enquanto se aguarda a reação dos poderes a este movimento que já vem se consolidando há mais de uma década no Brasil pelo esforço de líderes da causa das pessoas com deficiência, profissionais engajados e alguns agentes culturais pioneiros no poder público e privado, cenas como as descritas no início deste texto continuarão acontecendo. É certo que com uma frequência muito aquém do ideal, mas em consistente crescimento ao longo dos anos.
Em um panorama ideal, todos os cinemas e teatros disponibilizariam recursos de acessibilidade. Não ouviríamos mais falar em “sessões especiais” para pessoas com deficiência e sim em ambientes para todos, onde os recursos estão disponíveis para quem precisa. As pessoas com deficiência escolheriam o programa como qualquer outra pessoa do público.
Quando os eventos forem feitos para todos, as deficiências estarão em segundo plano e seremos simplesmente pessoas vivenciando uma experiência, independentemente das diferentes necessidades de cada um.
Quem já teve a oportunidade de participar de um acontecimento onde os recursos de acessibilidade estão disponíveis e as diferenças são respeitadas sabe que a inclusão não faz bem apenas para as pessoas com deficiência, mas sim para todos. A possibilidade do convívio pleno é transformadora e fortalecedora para todos os indivíduos indistintamente e nos coloca em um novo patamar de evolução.
Graciela Pozzobon da Costa é atriz e especialista em audiodescrição
Fonte: O Globo
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